terça-feira, 20 de dezembro de 2016

A Intolerância Religiosa no Brasil

Chegamos ao temido assunto, ao tema da esperada redação do Enem de 2016. Mas afinal, você acha que existe intolerância religiosa no Brasil? Em termos históricos, o Brasil já passou por um longo processo de segregação religiosa, enquanto ainda era colônia o país recebeu também os ventos da Santa Inquisição. Mas parece estranho pensar em intolerante um país que desde sua independência apesar de se intitular um país cuja religião oficial era a Católica, permitia a liberdade de culto, isto é, em 1824, na nossa primeira Constituição. Como podem conviver no mesmo país duas situações tão opostas?
Os resquícios desse passado perpetuam até hoje, e é o que podemos observar nas ironias do dia a dia. O nosso país é laico e teoricamente liberal, mas no cotidiano, como nas redes sociais, o que vemos são cada vez mais discursos de ódio. Essa dicotomia reflete, por exemplo, na estigmatização das culturas de origem africana e a banalização da fé cristã. Chamar todos os pastores de ladrão, os padres de pedófilos ou as religiões afro-brasileiras de "macumbeiras" (de forma ofensiva e genérica), dentre outros termos pejorativos, além de ofensivo é antiético, e por vezes crime. Prossigo, o preconceito alcança a todos, também as religiões tidas como minoritárias como o espiritismo, judaísmo, budismo, islamismo ou até a não-religião do ateísmo às vezes sofrem agressões.
Quem nunca viu alguém debochando de alguma religião alheia? No plano formal, as religiões têm todo o direito de terem seus conflitos, mas em termos práticos essas diferenças não deveriam agredir a vida das pessoas. Não parece sensato que a ideia da "fé' que se materializa no "amor" (o que pode ser visto majoritariamente nas correntes religiosas), seja concluída no termo das religiões e acabem por agredir tanto umas as outras. Segundo o nosso Estado de Direito, nós temos direito a professar a religião de nossa preferência, inclusive temos o direito de não praticar nenhuma religião.¹
Nos dias atuais (na verdade, parece-me que desde sempre), temos visto um certo extremismo nas posições das pessoas, por hora relatarei um episódio histórico para mostrar a contradição do ato do extremismo. Eichmann, oficial da organização nazista durante a Segunda Guerra Mundial, encaminhou muitos judeus para a morte e inclusive presenciou assassinatos. No entanto, em seu julgamento alegava não se sentir culpado, porque havia seguido o "imperativo categórico" de Kant², ou seja, estava apenas obedecendo a ordens, contou em seus relatos inclusive que não tinha nada contra o judaísmo, tanto que ele e alguns amigos tinham namorado judias. Em termos gerais, parece sem sentido se posicionar de forma extrema em uma sociedade tão globalizada e plural, em que nos relacionamos com indivíduos dos mais variados credos.
Apesar de ser possível alegar que o contexto é diferente, afinal, aqui no Brasil a intolerância religiosa não mata ninguém (a princípio), ele me parece bastante válido. Primeiro, que isto é até onde sabemos. Depois, pois não podemos afirmar que a razão de alguns suicídios os quais ocorrem pelo país não tem cunho religioso. E também, porque a agressão psicológica por vezes é tão incidente quanto à física.
O nosso sincretismo religioso visto de forma tão utópica pela ideia da união do branco, do negro e do índio, é de se questionar. Falar que não existe intolerância religiosa no Brasil é tão ingênuo como dizer que não existe racismo, machismo ou homofobia no mundo.  E não, isso não é coisa da esquerda ou direita, definitivamente essa é uma questão humanitária. Se Martin Luther King não tivesse saído da sua zona de conforto e lutado pelos direitos dos negros, o que seria dos EUA agora? Talvez a eleição de Donald Trump fosse o menor dos problemas.
Ninguém é proibido de apresentar sua fé a outrem, ninguém é proibido de manifestar a sua fé e de apresentar seu ponto de vista, não somos proibidos de fazer isso. Apenas devemos saber que em tudo há um limite, não é na bala, nos xingamentos e em nenhuma forma do tipo que iremos resolver nossas divergências, como “crianças birrentas”. Se até dentro de uma mesma religião há divergências, quem somos nós para achar que todos irão pensar igual? Todos temos o direito de professar o que acreditamos, seja o que for, e precisamos ser tolerantes o suficientes para lidar com isso, senão estaremos fadados a autodestruição.
Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las.
Evelyn Beatrice Hall- Biógrafa de Voltaire”


¹ A Constituição Federal, no artigo: 5° VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.
²Abordagem retirada do livro “Eichmann em Jerusalém” de Hannah Arendt.

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