quarta-feira, 17 de maio de 2017

Eterna Menina

"Era a segunda vez na semana que sentia aquele estranho formigamento no braço. Já bastava aquela atriste danada, eita dureza. Fazia cerca de um mês que Dora não recebia nenhuma visita dos filhos. Mas tudo bem, ela sabia que não podia julgá-los, eles trabalhavam demais. É meio triste pensar nisso, porém, todo mundo sabe que a música é verídica: Filho vira passarinho e quer voar...
Enquanto caminhava para cozinha avistou o retrato do falecido marido. Era engraçado o quanto de abobrinha falara pra ele quando era vivo, seria triste se ela não soubesse que ele sempre a amou do jeitinho que era. A vida não era tão amarga assim, afinal. Havia sido casada por mais de 40 anos, tinha 3 belos filhos e 5 netos. Só que na verdade a quantidade não significava nada, do que adiantaria se tivesse passado todos aqueles anos casada com um homem que não amava.
Uns dias antes a neta mais velha fizera uma pergunta engraçada, a moça ainda se sentia muito jovem pra casar, coisa que admitia ter certo medo, mas gostava muito de uma rapaz quem namorava há anos. Agora ela queria saber como a vó tinha mantido tantos anos de casamento e se teria valido a pena. A senhora respondeu com sinceridade, não sabia se a maioria dos casamentos realmente valiam a pena, mas como ela amava o esposo e casou por vontade própria, achava que valeu o risco. E também contou que além dos beijos ardentes, ela e o esposo tinham um combinando de beber uma boa xícara de chá para acalmar os ânimos sempre que discutiam. Ele fazia falta.
Mas não pense que dona Dora vivia a vida a míngua não. Ela era dona de si demais pra ficar só relembrando o passado. Dirigiu-se logo à cozinha para fazer mais um bolo. Adorava cozinhar desde moça, ainda que não perdesse uma oportunidade de botar o esposo na cozinha também. Achava curioso e se alegrava em como um dos netos homens tinha apreço pela culinária. Quando era mais nova isso não era muito bem visto, o que ela achava uma tolice completa. 
E então você deve estar se perguntando: para quem seria esse precioso bolo? Ora, não que ela não pudesse fazer para si mesma, só que gostava de compartilhar as coisas. Ainda mais ela quem passara anos de sua vida trabalhando na assistência social. Aproveitou a aposentaria para ser uma pessoa mais ativa na sociedade. Inclusive, não perdia uma reunião das mães do bairro de filhos com transtornos escolares, para onde estava indo naquele dia. Sempre tinha uma boa lição para dar, lembrava-se do seu filho caçula que tinha TDAH e dava bastante trabalho na escola.
Pensava nisso enquanto terminava de lavar a louça. Dentro de cinco minutos o bolo estaria pronto, e nossa senhora com alma de menina sairia cantarolando de casa. Isso é, mas não sem antes passar seu bom e velho batom. Não é porque passou dos 60 que não se pode usar maquiagem, certo? Quem sabe não achava um novo amor, como diziam os netos, algum 'crush'. Riu de mais essa meninice enquanto fechava a porta. O rosto já um pouco enrugado estampava um sorriso caricato de uma mulher que jamais envelhecera. "

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