quarta-feira, 1 de março de 2017

Um Rombo na Humanidade

“Fazia duas horas que ela estava olhando para baixo sem saber o que falar. Você já esteve em alguma situação na qual se encontrou sem palavras, de um jeito negativo? São dias como esses que nos fazem querer nunca ter nascido, ainda que isso soe muito forte. Que ser humano é de pedra a ponto de nunca ter se sentido fraco e inerte? No caso de Andressa não era a primeira vez... A primeira vez da qual se lembrava era de quando tinha apenas 13 anos.
Há algum tempo suas amigas a perguntavam por que ainda usava só sutiã de pano, daqueles fininhos, ela já estava muito moça. Sabia disso, mas não se sentia assim mentalmente, para ela ainda era apenas uma menina. Só que o nosso corpo não pensa muito assim. Como por fora estava se tornando mulher, por dentro ainda era só criança. Porém, sua nova preocupação era sobre a menstruação, ainda nos primeiros meses não sabia identificar quando viria ou não, morria de medo de que viesse em alguma hora ruim. Seu medo foi tanto que acabou se tornando realidade. 
Certo dia seu coleguinha de sala, o qual sentava atrás dela, começou a rir, então ela percebeu o que havia ocorrido e se sentiu muito constrangida. Correu ao banheiro na tentativa de reverter o estrago, nada que um casaco na cintura não encobrisse. Ainda assim deixou que as lágrimas escorressem por sua face antes de retornar a sala. Pareça forte- dizia para si mesma. Ser mulher tem dessas. Ser mulher não é tão simples quanto pode parecer. Ainda mais sob falsos estereótipos.
Falando deles, não demorou muito para que começasse ouvir frases caçoando um colega que era muito sensível. Aquilo a afligia muito, porque geralmente a chamavam de sensível em tom de elogio, o que ela não se importava, ainda que houvesse dias que não concordasse com toda essa aparente fragilidade. Parecia que sempre estavam esperando uma determinada atitude de todos. Talvez por isso tentasse ser o mais autêntica e independente o possível, ela odiava a ideia de ter de esperar outrem para abrir uma garrafa de coca-cola, se ela fosse capaz de fazê-lo.
Aos poucos foi sentindo o peso nos ombros de ter nascido mulher. Porém, ainda assim, amava ser mulher, gostava de ser feminina a seu modo, e não se importava nem um pouco com o que esperavam dela. Ela é quem sabia quem era. E pensava que isso estivesse muito bem resolvido, pelo menos até aquele dia. Até o dia em que enquanto andava na rua, dois rapazes aparentemente alterados pegaram-na pelo braço e pediram-na pra ficar quieta. Ela sabia o que iria acontecer, sabia, então gritou, alto, bem alto. 
Quando aquelas mãos asquerosas lutavam contra as dela na tentativa de tirar-lhe a roupa, ouviu um grito. Solte a menina agora! Eu já chamei a polícia!- vinha de um senhor que saíra da casa ao lado. Um suspiro de alívio saiu de sua boca trêmula quando aquelas mãos lhe soltaram e foram para longe. Uma senhora saiu e a chamou para sentar e tomar um copo d'água enquanto a polícia não chegava.  Foi difícil, dolorido, deixar as palavras saírem na delegacia. Saíram lentamente, para se tornarem mais um caso arquivado. 
Quando sua família foi buscá-la tentou explicar da forma mais sucinta. Pediu silêncio e se dirigiu ao quarto. Estava estupefata. Perguntou-se onde estava a humanidade, educação, racionalidade e igualdade nesse momento. Ela saíra ilesa tendo em conta o que poderia ter acontecido. Mas e as outras? Todas as outras assediadas todos os dias? Não tinha palavras, não tinha lei, não tinha lágrimas que tapassem esse rombo na humanidade."

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